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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

PARAÍSO DOS CAMINHANTES

Trilha no Mato da Toca revela o Guartelá que poucos conhecem
Caminhada pelos campos e mata fechada inclui arenitos gigantes, cachoeira e muito desafio
Um passo depois do outro e lá se vão oito horas de caminhada por 15 quilômetros entre paisagens deslumbrantes numa trilha ainda pouco explorada dentro do sexto maior canyon do mundo. A Trilha do Mato da Toca no Guartelá, em Tibagi, reúne um pouco de cada elemento que torna um roteiro de aventura inesquecível porque reserva a oportunidade de íntima ligação com a natureza. O produto de turismo ecológico já é procurado por caminhantes experientes e também por pessoas que desejam mais contato com a biodiversidade do Parque Estadual. Para identificar os atrativos deste paraíso a 18 quilômetros do centro da cidade, 11 pessoas realizaram nesta terça-feira (11) expedição técnica e fotojornalística do passeio, a convite do maior conhecedor da área: Manoel Sirino, tataraneto do primeiro morador do Guartelá. O grupo formado por voluntários e pelo pessoal que trabalha na Secretaria Municipal de Turismo (Sematur) e na Assessoria de Comunicação da Prefeitura partiu logo cedo rumo à propriedade de dona Júlia Aleixo, tia de Manoel, à beira do canyon Guartelá. Roupas leves, tênis nos pés, mochilas nas costas guardando o almoço, uma troca de roupa, aparatos de segurança e água – tudo pronto para o desafio que gerava grande expectativa, mas que ainda não se anunciava tão impressionante. Ninguém seria capaz, naquele momento, de imaginar quantas surpresas incríveis o trajeto reservava. Não há monotonia nos 15 mil metros. A paisagem muda dos campos de cerrado típicos da região para a mata ciliar nativa no Rio Iapó, densa, e que se abre para imensos arenitos, nascentes, córregos que lembram fotografias de calendário, uma cachoeira em meio a uma fenda no paredão de pedra, trilhas fechadas e até a descida por pedras no leito de um rio.
O tempo colaborou com temperatura agradável, sol entre nuvens durante a maior parte do percurso. E no final, uma forte chuva refrescou os ânimos do grupo, reforçou as energias para o ponto forte da chegada, onde dona Júlia aguardava com um café especial, feio no coador de pano, servido no bule sobre a chapa e acompanhado de milho verde assado, queijo caseiro derretido, bolo de fubá, suco natural de morango e o tradicional bolinho 'dianssim', iguaria frita na banha de porco em panela de ferro, feita de polvilho e farinha de milho. O nome do prato é referência ao formato torcido da massa, no palavreado guarteliano, 'trançado de assim' (parece com dedos cruzados). Para completar, a anfitriã contando o causo do Lobisomem do Guartelá e recitando versos de amor repassados há muitas gerações. Misto de aventura, adrenalina, esforço, história, proximidade com a natureza, cultura popular!
Paraíso
“Neste lugar a gente se sente mais próximo de Deus”, resume uma das integrantes da expedição, Maísa Jacob, psicóloga. “Gostei muito. É uma visão diferente do canyon, uma aventura por lugares onde se pode explorar a paisagem e quebrar totalmente a rotina, desde a hora que se chega, até a saída”.
A aventureira destaca, além da vegetação, os aspectos culturais do passeio, com a narrativa do guia sobre cada ponto de parada, explicações sobre plantas, animais, clima, geologia até a citação sobre causos populares e lendas. “Aqui a pessoa sai do trivial. Não é só uma caminhada na natureza, é muito mais”, pontua.
Leri Ribeiro, coordenadora de Meio Ambiente da Sematur, garante que o passeio liberta o turista do estresse do dia a dia e “compensa o cansaço físico”. Aos 47 anos, ela enfrentou o desafio com ânimo e mostrou que o trekking não exige muito preparo, apenas disposição. “Este trajeto maior, que fizemos, recomendo para jovens e pessoas acostumadas à aventura, porque as trilhas são de nível bem difícil. Mas todos podem tentar”, aconselha. Manoel Sirino assegura que todo mundo tem vez no passeio. “Há inúmeras trilhas dentro da propriedade. Caminhadas de uma a 12 horas em diferentes níveis”. Ele conta que uma das mais marcantes visitas foi a de um homem em tratamento de leucemia. “Trouxe ele de carro o mais próximo do mirante na propriedade do tio Bento e em passos lentos percorremos 200 metros. Na volta usamos cadeira de rodas. Foi emocionante, porque o sonho dele era conhecer o canyon”, relembra. Grupos da terceira idade e crianças podem fazer trajetos menores, inclusive à noite. “Em noite de lua cheia isso aqui é lindo demais”, indica. No meio do caminho, o encontro com três turistas que pela primeira vez exploravam esta área do Guartelá. Um deles estava ainda mais impressionado. Arjgan Van Der Seteen mora em Wouwse-Plantage, na Holanda, e está em férias no Brasil. Acompanhado de Ellen Salomons, de Arapoti, e de Nico Biersteker, de Carambeí, o estrangeiro relatou que não está habituado com os recortes da nossa geografia, já que a Holanda é situada em extensa área de planície. “Lá é tudo muito plano, eles não conhecem estas montanhas e toda esta natureza”, comenta Nico. “Bem legal a natureza, muito bonito”, revela o turista, na tradução da amiga Ellen. “Principalmente a mata fechada. Escalamos uns paredões de pedra”, completa a companheira de viagem.
Biodiversidade
Mesmo quem está acostumado com a rica paisagem do Guartelá se impressiona. Letícia Albuquerque é gerente de Meio Ambiente da Sematur e já estudou bastante sobre a Área de Preservação Ambiental (APA) do Parque Estadual. Durante todo o percurso, comentava sobre o grande número de nascentes de rios, a variedade de plantas e de animais, mas não conteve a surpresa ao encontrar em meio à mata fechada uma fenda no paredão de pedra por onde uma cascata de água propunha um banho gelado. “E nosso guia também explica sobre a vegetação, a importância da preservação, a história. O passeio fica completo”, diz ela. Christian Camargo, o fotógrafo da caravana técnica, voltou com os pentes de memória das câmeras lotados de registros que agora ajudarão na divulgação do lugar. Apesar da missão profissional, ele não perdeu a chance de vivenciar momentos como turista. “Foram 15 quilômetros bem distribuídos, com alguns lugares beirando 45º de inclinação”, ressalta. Apaixonado por aves, o fotógrafo tem um enorme arquivo de imagens dos pássaros de Tibagi, devidamente catalogados. A trilha foi mais uma oportunidade de identificá-los. “Várias espécies de aves, vestígios de animais no solo e a paisagem única”, destaca. O que faltou foi tempo, na sua opinião. “Fiz algumas fotos, mas o canyon é gigantesco e tem muita coisa para fotografar. Já deixamos agendadas mais visitas”
Um dia de guartelianos
A trilha começou as 10h30 e terminou as 18h30, com paradas em mirantes naturais de arenitos que permitem visualizar montanhas, como o Morro da Tartaruga, e até a Fazenda São Damásio, antes refúgio de escravos. A vista vai longe e esbarra em paredões de pedra com figuras que assumem personagens conforme a imaginação de cada caminhante.
O início é por trilha aberta, em campo e sobre pedras. Nos primeiros quilômetros, o caminho se chama 'Trilha do André', dentro do sítio de dona Júlia. Em seguida, Trilha da Cerca Velha. Na Serrinha, a equipe andou sobre a divisa do Parque Estadual e da propriedade particular, ali, Trilha da Restinga. A descida em direção à mata fechada anuncia a parte principal do trajeto: a Trilha do Mato da Toca. Durante toda a empreitada, o grupo desbravador encontrou vestígios de animais da região. Num dos mirantes mais bonitos, fezes de lobo-guará. “O lobo não é bobo. Olha a vista que ele contempla todo dia”, brinca um dos caminhantes.
Vegetação
As flores do campo e outras inúmeras plantas do cerrado também chamam a atenção pelos formatos, pelo colorido, como sempre-vivas, flores-de-perdiz, bromélias, e até pela interação com o turista. Sim, tem planta que se comunica. A mimosácea cor-de-rosa encolhe suas folhas ao toque das mãos e por isso é conhecida como dorme-dorme, ou 'gruvinha', do termo engruvinhado. Barbas-de-bode formam uma camada macia sobre os canteiros da trilha, cactus despontam em meio ao campo e de vez em quando, as araucárias imponentes, de tronco robusto, se põem à frente mostrando que ali estão há pelo menos uma centena de anos. Na mata, enormes imbuias, hoje árvores raras, espalham sementes pelo chão. Compartilham espaço com cedros, xaxins, samambaias, copaíbas e cambuís, entre muitos outros. Manoel aponta ervas medicinais, usadas pelos antigos moradores, e até hoje por sua família, como chá-da-índia, carqueja, caipiá, erva-de-São-João-de-Maria (isso mesmo, do Monge que passou pela região fazendo milagres) e espinheira-santa, entre outras. Um arbusto verde escuro, de folhas minúsculas, é motivo de parada para um causo. “Esta planta é conhecida como Miu-Miu e quando a vaca come, estufa até morrer. Muitos criadores de gado que trouxeram os animais de outras regiões ficavam impressionados quando chegavam aqui e viam suas vacas morrerem. Perguntavam ao meu avô como as vacas dele não comiam o Miu-Miu. Meu avô costumava brincar com a situação e ensinava os criadores a trazerem as vacas deles para conversarem com as nossas, porque as vacas do Guartelá não saíam por aí comendo qualquer planta bonitinha, verdinha”, relata Manoel. A narrativa do guia tem sentido. Segundo ele, os animais criados na região desenvolvem a percepção do que podem e do que não podem comer. É como se elas passassem de geração a geração o conhecimento guarteliano. “Elas são animais inteligentes e observadoras”, completa. Nos capões de mata aluviar, as nascentes afloram por toda parte e desviam as rotas dos caminhantes, o tempo todo orientados sobre a importância da preservação. Apesar de longa, a caminhada é planejada para causar o menor impacto possível. Os turistas seguem em grupos de no máximo dez pessoas, em fila indiana, apenas pelas trilhas já abertas. “Muitas foram abertas por tropas de muares que traziam a produção da roça para cima. Os guartelianos costumavam plantar na várzea do rio Iapó”, revela Manoel. Num dos pontos, o guia pede ao grupo para observar sob a vegetação um amontoado de pedras, trazidas pelas mãos de negros que povoavam a região ainda no período da escravidão. É uma cerca feita para isolar o gado das plantações.
A toca
Dentro da mata fechada, ao lado da 'toca' que dá nome à trilha principal, com o som do caudaloso rio Iapó e de muitas aves como trilha sonora, parada para o lanche. A formação arenítica lembra arquitetura moderna, com amplo paredão inclinado e que, para os guartelianos que usavam a trilha para escoar a produção de milho, servia de abrigo à noite. “Não é uma toca, mas foi apelidada assim porque a gente usava para se esconder da chuva ou dormir. Acabou ficando este nome e está inclusive na escritura da área”, revela Manoel.
Barba de grilo
Até ali, tudo tranquilo, afinal, na descida todo santo ajuda. Porém, o percurso da tarde não seria “barba de grilo”, como diz Manoel. A cada passo na íngreme subida de mata densa, a respiração se tornava mais ofegante. Esforço recompensado com o olhar para o alto: arenitos gigantescos, em formatos que variam de pedras redondas a grandes rupturas, fendas, falhas no chão. “Há centenas de milhares de anos, numa das várias eras vivenciadas pelo planeta, o movimento das placas tectônicas fez emergirem estas rochas”, segundo Manoel. São arenitos com 50 a 100 metros de altura numa extensão ainda difícil de dimensionar, acima do nível do rio 200 metros. Alguns passos a seguir e outro ponto de tirar o fôlego, mas por admiração mesmo. Um paredão de pedra verde, coberto de vegetação, é cortado por fenda de onde, do alto de aproximadamente 25 metros, cai um filete de água, formando a cachoeira ainda sem nome. Banho irresistível àquela altura da missão. O que vem em seguida não é para qualquer um. “Tem muita coisa para explorar. A gente escolhe a trilha conforme o perfil do turista. Por aqui não são todos que eu trago”, ressalva o condutor, confiando na habilidade da turma para descer entre pedras gigantes o leito do rio que se forma quando a cachoeira está mais cheia. “É por aqui que escoa a água quando a vasão é maior”, explica. A descida pelas pedras úmidas, cobertas de limbo, são um desafio que exige muita cautela. Em alguns pontos é preciso sentar na superfície verde e simplesmente escorregar. Em outros, é necessário escalar pedras e cruzar por fendas estreitas, em que a mochila deve ser retirada das costas para o corpo passar de lado. É um bom momento para testar a saúde das suas articulações.
Família
Toda a variedade de atrativos dentro da mesma trilha distraem e é fácil perder a noção do tempo. No entanto, o relógio avisava que o grupo não poderia demorar muito. Uma breve parada para reabastecer os cantis foi marcado por mais história guarteliana. No rancho de pau a pique, Manoel amola o fio do facão na mesma pedra usada há muitas gerações por seus ancestrais. “Meu tataravô foi o primeiro morador do Guartelá”, repete. Os italianos Profírio e Leucádia do Prado viviam nos campos à margem esquerda da rodovia. Foram os bisavós Inácio e Amália do Prado que adentraram a área hoje transformada em Parque Estadual para viver. “O vô Nhoca [Manoel Antonio Gomes] e a vó Candoca [Maria Cândida do Prado] é que viveram aqui no mato”, relaciona. O rancho servia de pouso nos dias de colheita ou de aração nas margens do rio para o plantio de subsistência. “Meu pai usou muito esse lugar para lidar na roça”, acrescenta. Hoje, aos 80 anos, Manoel Silvério e Maria Eutália dos Santos , pais do guia, vivem na entrada do parque, no mesmo estilo de sempre. Resumindo, há pelo menos três gerações, Manoéis e Marias se mantêm no paraíso como típicos guartelianos.
Como chegar
Conhecer a Trilha do Mato da Toca é uma aventura que realmente vale a pena. Em Tibagi, as operadoras de turismo Tibagi Aventuras e Guartelá Ecoturismo vendem os pacotes do passeio por R$ 70 por pessoa a grupos de no mínimo dois integrantes. A capacidade de carga do local é de 30 visitantes por dia, indispensavelmente com a presença do guia. O valor inclui guia, entrada no local e o café típico da dona Júlia. Mais informações no 0800-643-1388. Tibagi fica a 240 quilômetros da capital do Paraná, Curitiba, na região dos Campos Gerais. Há boas rodovias de acesso: pela BR-376 (rodovia do Café), PR-151, passando por Castro, ou pela BR-153 Transbrasiliana.
Serviço
Sematur (42) 3916-2150
Manoel Sirino (42) 9971-1530
Agência Guartelá Ecoturismo (42) 3275-1357
Agência Tibagi Aventuras (42) 9914-3516 / (42) 3275-2778
Próxima Expedição: Trilha do Lobisomem do Guartelá
O sítio da tia Júlia será cenário de uma das mais belas aventuras em Tibagi. Em 18 de fevereiro, sexta-feira de lua grande, Manoel Sirino realiza a I Trilha do Lobisomem do Guartelá, caminhada pelo canyon em noite de lua cheia. Haverá jantar com frango caipira em panela de ferro no fogão à lenha e ainda o lançamento da bebida típica do Guartelá: o Pica-Pau da Dona Júlia, mistura de pinga, mel e limão. O evento é limitado para 30 pessoas e reservas são feitas com Manoel, no (42) 9971-1530.

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